O alagoano Carlos Buby transformou os rituais em cerimônias diurnas, bem organizadas e voltadas para o público de classe média. Com isso, seus 11 templos já atraíram mais de mil fiéis no Brasil, na Europa e nos Estados Unidos.
Mariana Sanches
INOVADOR
Sexta-feira, 8 horas da noite. O som dos atabaques – tambores africanos – ecoa na ampla sala. Em círculo, mulheres com saias rodadas e coloridas e homens de bata e turbante batem palmas e entoam cantos que evocam orixás e Pretos Velhos – espíritos que representariam escravos anciãos. Os fiéis procuram seguir os versos em português escritos em um panfleto. Eles dizem aguardar a presença das entidades para contar suas aflições. No fundo da sala, um pequeno altar enfeitado com plantas e flores sustenta a imagem de um índio, o Caboclo Guaracy.
Em instantes, os médiuns – os que recebem os espíritos – teriam começado a incorporar seus Pretos Velhos. A descrição seria fiel a diversos terreiros de umbanda, religião considerada brasileira, que agrega orixás do candomblé a entidades como o Caboclo e o Exu. Nessa casa, porém, boa parte dos umbandistas é francesa. O templo umbandista a poucos metros da Bastilha, no número 8 do beco Druinot, em Paris, França, é um dos 11 terreiros de umbanda espalhados por sete países e dirigidos por um único pai-de-santo: Carlos Buby. É assim que se apresenta o alagoano, de 57 anos, Sebastião Gomes de Souza. Em duas décadas, ele levou o Templo Guaracy do Brasil a Washington, Berkeley, Nova York, nos Estados Unidos; Quebec, no Canadá; Linhol, em Portugal; Graz, na Áustria; Genebra, na Suíça; Paris, Estrasburgo, na França. Lugares onde a religião era praticamente desconhecida. A expansão da umbanda promete ser ainda maior com a inauguração no ano que vem de filiais no México, na Espanha, na Grécia e no Peru. Enquanto no Brasil o número de umbandistas declarados decresce – segundo dados do IBGE, passou de 542 mil adeptos em 1991 para 432 mil em 2000 –, só os fiéis das casas de Buby já ultrapassam os mil.
Os números não são o que mais chama a atenção dos especialistas em umbanda. Eles dizem se surpreender com a nova umbanda criada por esse pai-de-santo. “É uma reedição moderna da religião”, afirma Vagner Gonçalves da Silva, antropólogo da Universidade de São Paulo. Para os sociólogos e antropólogos, Buby conseguiu tirar o templo do porão para alocá-lo em um espaço novo, que segue conceitos de arquitetura e estética. Os templos Guaracy apresentam várias novidades. A primeira delas é que são projetados e pensados para abrigar com conforto as classes média e alta, ao contrário dos templos de fundo de quintal. No exterior, a maioria dos freqüentadores é nativa, não brasileira. Outra inovação: normalmente, o pai-de-santo é responsável por apenas um terreiro. Carlos Buby controla uma rede de terreiros no Brasil e no exterior. Por meio de relatórios enviados por e-mail ao final de cada ritual, ele acompanha como cada filial se desenvolve. “É muito raro ver um pai-de-santo comandando vários templos. Filiais de centros na umbanda são uma inovação”, afirma Gonçalves da Silva.
Carlos Buby tem um físico enxuto. Sua estatura alta e seu porte são incomuns para quem afirma não fazer mais que meia hora de esteira por dia. A presença do dirigente nunca é ignorada. Por onde passa, as pessoas se viram com sorrisos, ainda que ele nem as cumprimente. “Buby tem uma energia incrível”, diz a biomédica paulistana Fabiana Ieger, que freqüenta há três anos um dos templos do Brasil. Ele também tem fama de fazer sucesso entre as mulheres. “O porte e o jeito de falar cativam. Ele chama a atenção das meninas.” Buby foi casado duas vezes s e hoje tem uma bela namorada, 36 anos mais nova que ele. Veste-se de modo simples, com bata e calça branca e um turbante de cor neutra. Se os fiéis reclamam de algo, é da falta de acesso a ele. Há mais de dez anos, o pai-de-santo não atende diretamente os visitantes. “Na última vez, em 1997, formou-se uma fila de 150 pessoas”, diz Buby. Apesar da fala mansa, ele não esconde o requinte das palavras e o poder de convencimento.
A origem desse líder umbandista faz jus à fama do Brasil como um país de forte sincretismo religioso. Batizado com o nome de Sebastião, santo que teria curado o irmão mais velho da coqueluche, o pai-de-santo nasceu em berço católico. Sua mãe, Natália Alves de Souza, afirma que não imaginava que o segundo filho fosse viver para – e dos – orixás. Os pais se mudaram para São Paulo porque queriam dar a ele, então com 7 anos, e a seus dois irmãos a possibilidade de estudo que não teriam na pequena Colônia Leopoldina, cidade de 17 mil habitantes a 84 quilômetros de Maceió. “Morávamos numa fazenda de cana-de-açúcar. Não tinha estrutura nem escola ali”, diz Natália.
Em São Paulo, as crianças puderam estudar. A família vivia do comércio e ia à missa todos os domingos. A trajetória do devoto coroinha da Igreja Matriz de Santo Amaro, em São Paulo, mudou quando ele completou 15 anos. Buby diz ter começado a sofrer de desmaios e dores de cabeça. Tornou-se um adolescente calado, sem entusiasmo pela vida. Perdeu o emprego de office-boy e não ia bem nos estudos. O pai-de-santo afirma que médicos, psicólogos e psiquiatras não conseguiram desvendar seu mal. “Meu diagnóstico veio dois anos depois: o Caboclo Ubiratan, em um terreiro de umbanda paulistano, disse que eu tinha mediunidade”, afirma. Um vizinho umbandista sugeriu a seus pais que o levassem a um centro. O pai-de-santo diz que os pais católicos acabaram por aceitar a idéia, mesmo acreditando que fosse pecado. Concordaram também que o filho continuasse a freqüentar o lugar por mais dois anos. Segundo Buby, foi quando o Caboclo Guaracy veio lhe dizer que era hora de fundar o próprio terreiro.
“Em 1997, na última vez em que atendi diretamente os fiéis, formou-se uma fila de 150 pessoas” Carlos Buby, pai-de-santo
Aos 19 anos, ele começou seu trabalho de modo caseiro, como tantos outros pais-de-santo. Buby afirma que incorporava o Caboclo na sala de casa, ajoelhado em frente a uma vela branca acesa sobre a radiovitrola, seu primeiro altar. De acordo com o pai-de-santo, no início, ele recebia os ensinamentos da entidade por intermédio de seu pai, que anotava tudo que entendia da fala enrolada do Caboclo. A irmã mais nova, Maria Aparecida de Souza, esperava pelo fim da sessão tremendo de medo. Aos poucos, ele passou a atender os conhecidos da família. Quando já não cabia mais gente na modesta casa do bairro paulistano Vila das Belezas, Buby resolveu montar um espaço próprio.
Embora diga que todas as mudanças que operou na religião tenham sido fruto de inspiração da entidade Caboclo Guaracy, as atitudes adotadas por Buby em seu templo demonstram ser resultado do planejamento de uma mente perspicaz e detalhista. Buby não chegou a completar o ensino fundamental. Repetiu seis vezes a 7a série e desistiu de estudar. Aparentemente, o conhecimento formal não fez falta. Quem o conhece diz que ele parece ter tino empresarial. “Ele é muito organizado e inteligente”, afirma Jamil Rachid, presidente da União de Tendas de Umbanda e Candomblé do Brasil. “Com administração regrada, o trabalho só pode prosperar.” A capacidade de organização veio com o trabalho no templo. Por volta dos 25 anos, Buby se dividia entre as funções de auxiliar de enfermagem durante o dia, pai-de-santo uma vez por semana e cantor de bar à noite. “Eu acabava as sessões, me trocava e passava a madrugada cantando em restaurante para conseguir me sustentar e manter o templo”, diz ele.
Após dez anos sem nenhum retorno na carreira musical, uma gravadora lhe propôs um bom contrato. Suas músicas seriam gravadas, mas ele teria de fazer inúmeras viagens para divulgação. “Eu ficaria 30 dias fora e dois em casa. Não tinha como conciliar a carreira de músico, de enfermeiro e dirigente de templo”, diz Buby. “Passei, então, a me dedicar totalmente à umbanda.” No início, os escassos dez filhos-de-santo –os médiuns sob a responsabilidade do pai-de-santo– e a casa rude e mal-acabada na Rua dos Missionários, em São Paulo, não permitiam prever a quantidade de seguidores e a suntuosidade que as casas do Caboclo Guaracy abrigariam. Hoje, há cerca de 430 filhos-de-santo brasileiros, divididos em dois templos no Estado de São Paulo. Um deles é s uma casa adornada por um lago artificial em que se criam carpas na região do bairro paulistano Campo Limpo. O outro, um sítio de 104.000 metros quadrados, com campos gramados, áreas de Mata Atlântica, um lago e uma cachoeira, em Cotia, na Grande São Paulo.
RITUAL E BELEZA
No templo de Cotia, as paredes são estilizadas. Nele, os médiuns ficam em círculo, formação incomum na umbanda. Os dois templos brasileiros foram arquitetonicamente projetados por Buby. São amplos, bem conservados e repletos de detalhes simbólicos. Durante o culto,todos os médiuns usam o mesmo modelo de roupa desenhado pelo pai-de-santo. Os objetos usados também são padronizados. Tudo parece estar sempre na mais perfeita ordem.
O Templo Guaracy em Cotia é aparentemente o melhor exemplo disso. Ao chegar lá, o fiel tem o conforto de um amplo estacionamento. É recepcionado por uma mulher com um turbante numa sala iluminada, com portas de vidro e cadeiras confortáveis. Numa escrivaninha descansa a tela plana do computador, no qual são registrados os dados do recém-chegado: nome completo, telefone, número do documento de identidade. As contas do templo estão no mesmo computador. “A informatização e o controle de freqüência são incomuns nos terreiros”, diz Milton Aguirre, presidente do Superior Órgão de Umbanda do Estado de São Paulo.
Vizinho à recepção, está o templo. Ele parece ter sido construído à semelhança de seu dirigente: imponente e sofisticado. Ao passar por uma das quatro portas de entrada, o visitante avista o colorido dos trajes dos umbandistas que dançam. No lugar de um velho reboco, paredes de barro graficamente desenhadas. O alto teto de palha dá um ar de suntuosidade. Ao contrário de outros centros, no Templo Guaracy os rituais são organizados de modo circular, com cada médium em seu lugar para dar maior visibilidade ao visitante. Evita-se qualquer ação que possa chocar ou constranger, como gritos ou a incorporação de espíritos que façam o médium se arrastar pelo chão. A duração dos cultos não passa de duas horas e sempre começa no horário, em sintonia com o relógio do pai-de-santo. “Isso tudo dá segurança à pessoa”, afirma Buby. “Quem entra aqui sabe que é um lugar organizado, que respeita horários.” Outra distinção importante: no terreiro de Buby o fiel não encontra Exus e Pombogiras, os espíritos que supostamente viriam do baixo povo. Bebidas alcoólicas não são ingeridas na frente dos freqüentadores, uma prática comum na umbanda. Boa parte dos cultos é feita à luz do sol, sempre com a presença de crianças. Também não há sacrifícios de animais.
O nascimento da umbanda
A versão mais aceita para a origem da umbanda estaria completando cem anos neste ano . Em 15 de novembro de 1908, o médium Zélio Fernandino de Moraes, considerado por muitos umbandistas como fundador da religião, teria incorporado o caboclo Sete Encruzilhadas em sua casa em Niterói. O fluminense Zélio tinha, nesse então, 17 anos. Ele sofria de paralisia e os médicos não conseguiam resolver seu mal. Para tentar sanar o problema, o jovem foi levado à federação espírita do estado do Rio de Janeiro. Ali, sua mediunidade foi supostamente revelada. A entidade caboclo Sete Encruzilhadas não teria sido aceita entre os espíritas por ser considerada inferior. A rejeição o levou a fundar a umbanda.
Carlos Buby moldou a religião para que fosse atraente e agradável para os letrados. “Buby criou uma umbanda clean”, afirma Lísias Negrão, sociólogo da Universidade de São Paulo (USP). O pai-de-santo diz que o estilo dos rituais faz parte da doutrina estabelecida pelo Caboclo Guaracy. Para ensinar esses preceitos, dá cursos pelos quais cobra até R$ 200. Nas aulas, os ditos médiuns, iniciantes ou não, tomam nota freneticamente enquanto Buby lança mão de conceitos científicos, como os genes ou a força da resistência do ar, para tentar explicar as energias dos orixás e suas formas de atuação.
“No Templo Guaracy, a arquitetura, os rituais, a filosofia e a explicação do mundo são complexos”, afirma a antropóloga húngara Viola Teisenhoffer, que faz doutorado sobre a expansão de terreiros de umbanda na França pela Universidade Paris X. “Eles atendem o tradicional umbandista e ainda atraem um público sofisticado, que provavelmente nunca pisaria num templo de fundo de quintal.”
É o caso da paulistana Daniela Matarazzo de 36 anos. A advogada da Embraer e ex-professora universitária, freqüenta o Templo Guaracy há seis anos. Daniela conheceu o lugar por meio de uma aluna de seu curso de Direito. “Eu trabalhava demais, vivia estressada e havia muito tempo não praticava minha religiosidade”, diz a advogada, cuja formação foi católica. Casada, mãe de dois filhos, com uma rotina estressante que a faz se dividir entre duas casas, uma em São José dos Campos onde trabalha, e a outra em São Paulo onde mora, ela afirma que o terreiro ajuda a melhorar sua qualidade de vida. “Vejo o templo como uma terapia. A umbanda se mostrou uma ótima oportunidade de refletir sobre a vida. Sempre saio com a auto-estima mais fortalecida.” Daniela nunca freqüentou outros terreiros antes e diz se sentir segura com o trabalho do Templo Guaracy. Quando questionada sobre outros terreiros ela hesita. “O que me fez ir ao Templo Guaracy foi o fato de os rituais serem de dia e de o lugar ser muito bonito, organizado e agradável”, afirma. “Se fosse à noite, num quartinho escuro, eu jamais iria. Tenho meus limites.”
Segundo o pai-de-santo todos os seus templos, inclusive aqueles fora do país, foram construídos com o dinheiro de doações dos freqüentadores. Ele também afirma que nunca houve transferência de caixa do Brasil para o exterior. “Cada templo se mantém com os recursos que consegue. Não há intercâmbio de dinheiro entre eles”, diz Buby. Ao contrário do que comumente acontece nos terreiros, ele não paga as contas do templo. Buby adota uma prática de muitas religiões tradicionais, mas exceção na umbanda: é sustentado pelo templo. Enquanto padres, bispos e rabinos recebem por se dedicar à religião, pais-de-santo da umbanda não se profissionalizam. Ao contrário, põem dinheiro do próprio bolso na instituição. “Mais de 90% dos terreiros são sustentados pelos dirigentes. Feliz é o pai-de-santo que consegue viver do dinheiro que sai dali”, afirma Rubens Saraceni, dirigente e autor de livros sobre o tema.
Buby transformou os dois templos de São Paulo em associações. Passou a convidar os freqüentadores, mesmo àqueles que só apareciam de vez em quando, a se tornar sócios. No início, a idéia era que cada membro brasileiro contribuísse com uma mensalidade de R$ 35. “É com esse dinheiro que mantemos a casa, mas se a pessoa não puder pagar não tem problema”, diz Buby. Muitos fiéis dos templos de Buby afirmam ser um preço justo pelo conforto e sofisticação que a casa oferece. Ainda assim, Buby diz que menos da metade paga o valor total. Ele exibiu as contas do terreiro para a reportagem de ÉPOCA. Nos recursos declarados por ele no Imposto de Renda de 2007, a arrecadação dos associados soma R$ 132.513, ou algo como R$ 11 mil por mês. “Muitos terreiros não arrecadam isso em um ano inteiro”, diz o líder umbandista Milton Aguirre. “Não conseguimos fazer com que os médiuns doem nem R$ 10.” Os gastos declarados no mesmo ano foram de R$ 173.289, resultando num saldo negativo de R$ 40.777. Buby diz que cobriu esse saldo negativo com os cursos que oferece. Ele também mostrou extratos de sua conta bancária pessoal – saldo negativo de R$ 700 – e da conta do templo – saldo positivo de R$ 2.114,17.
Se os templos paulistas foram planejados, o mesmo não aconteceu, -diz Buby- com os nove terreiros Guaracy fora do país. “Ter casas no exterior nunca foi minha intenção”, afirma. Ele não fala nenhuma língua estrangeira e se diz pouco afeito a viagens. Nos anos 80, psicólogos suíços e franceses em visita ao Brasil teriam ido conhecer o primeiro templo. “Eles ficaram fascinados. Em menos de três meses, voltaram querendo aprender sobre a tradição”, diz Buby. Desse interesse teria nascido o primeiro terreiro fora do Brasil, o Templo Guaracy de Genebra, na Suíça. Numa sala alugada, uma imagem do Caboclo Guaracy ocupou o centro do altar, adornado com flores, pedras e uma pequena fonte. Os suíços e os franceses compraram as roupas coloridas e bufantes criadas por Buby, modelo depois usado em todas as unidades. Para entender as entidades da umbanda os estrangeiros tiveram de estudar a história e o significado dos Caboclos e Pretos Velhos. Buby exigiu que todos os praticantes fizessem o culto em português. Fitas cassete gravadas com os cantos umbandistas foram reproduzidas à exaustão, até que o coro perdesse o sotaque.
Cassandra Kharam, professora americana de 39 anos, é uma das 40 pessoas que vão ao Templo Guaracy de Washington semanalmente. Filha de judeus, Cassandra foi a cultos islâmicos e conheceu a religião cubana santería, equivalente ao candomblé nos países centro-americanos. “O terreiro de umbanda foi o lugar em que me senti melhor”, diz. “Nos Estados Unidos, as pessoas estão carentes de um senso de comunidade e de maior positividade, coisas que a umbanda tem. As outras religiões são mais fechadas e unilaterais.”
Na Europa, talvez por curiosidade ou necessidade, franceses e austríacos começaram a viajar até Genebra para ouvir as palavras de um caboclo. “Pensamos, então, que seria possível formar templos na Áustria e na França”, afirma Maria Aparecida, irmã de Buby. Ela antes temia a aparição do Caboclo. Hoje, visita os terreiros no exterior a cada quatro meses. É a responsável por garantir que os rituais sejam idênticos aos realizados no Brasil. Depois de Genebra, Buby fundou outros quatro templos na Europa.
Os templos estrangeiros sofreram pequenas adaptações. Em Berkeley, nos EUA, é proibido fumar em locais fechados. Isso levou os médiuns a abandonar charutos e cachimbos usados nos rituais. Em Paris, os umbandistas estocam no congelador ervas importantes para os rituais, como o manjericão, que não resiste ao frio da cidade. Em Washington, grossas espumas isolam o som forte do atabaque do resto da vizinhança. Apesar dessas alterações, esses templos têm a mesma organização administrativa do Brasil. O trabalho é realizado por s coordenadores, pessoas escolhidas por Buby para resolver os problemas práticos e burocráticos das casas. Eles registram os visitantes, cuidam de uma loja de produtos religiosos e cobram mensalidades dos associados. Anualmente, os filhos-de-santo têm de vir ao Brasil. Para isso, Buby montou uma pousada em Cotia, na Grande São Paulo. “O pai nunca veio a nosso terreiro, por isso é importante irmos a seu país para beber na fonte da sabedoria”, afirma Krishna Ruano, coordenadora do templo de Nova York. “Ultimamente, não temos ido porque a viagem é muito cara.”
Essa é uma reclamação recorrente dos estrangeiros. Há quem diga que essas viagens anuais são um dos meios de Buby ganhar dinheiro. “A gente ia para ficar uns dez dias no Brasil. Ficávamos presos no templo e ainda pagávamos 30 euros por dia pela hospedagem”, diz um ex-filho-de-santo na Europa, que não quis se identificar. “O que ele faz não é umbanda. Ele não é um pai-de-santo, é um empresário, um agente de viagens.” Buby nega as acusações e afirma que sua intenção nunca foi lucrar com a religião. “Só tenho uma linha telefônica. Todas as propriedades estão em nome do templo”, diz.
Essa não é a única polêmica em que se envolveu o líder religioso. Em 1996, a psicoterapeuta francesa Barbara Schausser, coordenadora do terreiro de Paris, foi processada por duas pacientes que a acusaram de praticar rituais da seita para tratar a bulimia de ambas. Barbara teria usado a umbanda como forma de tratamento. Isso teria causado dependência emocional e isolamento social, segundo as francesas. A psicoterapeuta respondeu ao processo judicial com um outro, por difamação. A história acabou em acordo amigável entre as partes. “Eu vejo o templo como uma terapia. A umbanda se mostrou uma ótima oportunidade de refletir sobre a vida. Sempre saio com a auto-estima mais fortalecida” Daniela Matarazzo, 36 anos, advogada.
O caso teve grande repercussão na França. Reportagens foram publicadas em jornais de grande circulação, como o Libération. Depois desse episódio, Barbara perdeu a credencial de psicoterapeuta do Mutuelle Générale de L’Education Nationale, órgão oficial do governo francês que apóia pesquisas na área da saúde. “Sempre busquei alternativas a remédios no tratamento de vícios e doenças compulsivas. Foi o que fiz nesse caso”, diz Barbara. Mesmo após o processo, ela continua com as práticas umbandistas em seu consultório, mas afirma que nunca mais levou seus pacientes ao templo.
Embora alguns pais-de-santo digam que Buby quer padronizar a religião e controlar os fiéis, seu estilo de dirigir o terreiro parece ser uma alternativa para a sobrevivência da umbanda no Brasil. “A tendência é que diminua o número de umbandistas”, afirma Reginaldo Prandi, sociólogo da religião da USP. “Um dos grandes motivos para a perda de fiéis é o crescimento das igrejas evangélicas, com sistemas menos complexos e que exigem menos tempo e dedicação.” Nas igrejas pentecostais, não há vários deuses, como os orixás. “Na umbanda, é sempre preciso estar alerta, dar atenção aos orixás, aos guias, fazer trabalhos e há sempre a ameaça de que alguém manipule essas forças contra você”, diz a antropóloga Yvonne Maggie, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Se a pessoa passa a acreditar que só Jesus salva, só ele é poderoso, tudo fica mais simples.”
É a idéia do medo do feitiço tão freqüente nos terreiros, que Buby procura afastar de seus rituais. “Não negociamos com Deus. Não acreditamos que os orixás sejam responsáveis pelo sucesso ou fracasso de alguém”, afirma. A nova leitura da crença feita por esse pai-de-santo, somada à administração moderna, pode atrair novos seguidores para a religião. “No futuro, quase todos os pais-de-santo serão como ele”, diz o antropólogo Vagner Gonçalves da Silva.
Para entender a umbanda: Significados de termos usados na religião
ADJÁ -Sino metálico de três bocas agitado pelo pai-de-santo
ARUANDA -Morada dos orixás, o céu na tradição católica
ATABAQUE -De origem árabe, é um instrumento de percussão africano, usado nos cantos
BABALORIXÁ -Sinônimo de pai-de-santo, que também pode ser dirigente de terreiro
ENCRUZILHADA -Nos cruzamentos de ruas, linhas férreas ou qualquer via terrestre estariam as moradas dos Exus e Pombogiras
GIRA -Nome dado aos rituais em que os espíritos viriam para atender os fiéis
GUIA -Entidades que os médiuns supostamente recebem. Também servem para designar os colares coloridos usados nos cultos
PEMBA -Tipo de giz que teria poderes mágicos, usado nos rituais de benzer
Os espíritos da umbanda: Os arquétipos das entidades que atendem os fiéis nos terreiros
CABOCLOS -Esses seriam os espíritos que se comportam como índios. Usam palavras em tupi. Fumam charuto e, por vezes, tomam cerveja. Usam cocar de penas e capas. Seriam os mais evoluídos, ao lado dos Pretos Velhos
PRETOS VELHOS -Representariam os escravos brasileiros. O médium que supostamente os recebe anda arqueado. Fumam cachimbo e tomam café. São procurados pelo poder de cura que teriam e nomeados de “vô” e “vó”
ERÊS -Seriam espíritos das crianças. A maior parte não sabe andar. Toma guaraná, chupa pirulito e benze os fiéis com brinquedos. Alegres, seus nomes estão no diminutivo. Chamam os adultos de “tio” ou “tia”
BAIANOS -Seriam arquétipos de espíritos nascidos na Bahia. Com forte sotaque baiano, usam expressões típicas, como “meu rei”. Fumam cigarro de palha, tomam batida de coco. Os homens geralmente carregam uma peixeira
BOIADEIROS -O mítico peão sertanejo responsável pelo gado seria representado por eles. hicote, boleadeiras e berrante são seus instrumentos. São valentes e fortes. Com voz grave, é difícil entender o que falam
MARINHEIROS -Quando baixam, faz o médium ter dificuldade de equilíbrio, chacoalhando de um lado para o outro, como se estivesse em alto-mar. Explicam o mundo por meio de metáforas
sobre navegação
CIGANOS -É uma nova entidade na umbanda. Eles dançam e tocam castanholas e pandeiros. A capacidade de adivinhação e leitura de cartas costuma estar relacionada à presença desses espíritos
EXUS/POMBOGIRAS -Conhecidos como espíritos que viriam do ambiênte prostibular, seriam capazes de fazer o mal em troca de bebidas ou velas pretas. O Exu toma uísque e cachaça. A Pombogira sidra, champanhe e anis
A psicóloga Barbara Schasseur, citada na reportagem, enviou a ÉPOCA a seguinte carta:
O processo a que a reportagem se refere foi na verdade iniciado por mim contra dois ex-pacientes em 1996, e não teve “grande repercussão na França”. A reportagem feita pelo Libération foi a única sobre o assunto, e saiu seis anos depois do processo, no momento da publicação de meu livro e de uma entrevista minha à Radio France. Essa reportagem foi feita por iniciativa de pessoas que criticavam minhas teorias e se apoiava na raiva de alguns pacientes.
Fui eu que me demiti da Mutuelle Générale de L’Éducation Nationale em 1999. A Mutuelle não é um órgão oficial do governo francês nem apóia pesquisas na área de saúde. É um fundo de aposentadoria complementar criado pelos professores franceses da Éducation Nationale, esta sim um serviço público.
Nunca perdi minha credencial com o governo. Não só sou psicoterapeuta, mas também doutora em psicologia clínica pela Universidade Paris VII, com diploma de medicina tradicional africana.
Não estou praticando umbanda no meu consultório. A umbanda é uma crença e uma religião que desenvolve a mediunidade para contactar entidades. Não levo nenhuma crença para dentro do meu consultório nem trabalho com mediunidade.
Nunca tentei tratar bulimia levando pacientes ao Templo Guaracy, porque sempre esteve claro para mim que o Templo Guaracy oferece um caminho espiritual, e não uma cura. A bulimia é uma doença grave, que precisa de ajuda especializada.
Por fim, gostaria de esclarecer que o Templo Guaracy de Paris é considerado pelo governo francês como um culto de tradição afro-brasileira, e não uma seita. Em 1996, na França, houve todo um movimento político e religioso perseguindo as associações que apoiavam conceitos espirituais. Uma “lista negra” das seitas foi publicada. O Templo Guaracy não entrou nessa lista porque sempre foi reconhecido na França, pelo governo, como um culto religioso,que respeita as leis do país. Se seus dirigentes foram criticados por algum motivo, é outra história.
Barbara Schasseur, Paris, França
Carlos Buby tem um físico enxuto. Sua estatura alta e seu porte são incomuns para quem afirma não fazer mais que meia hora de esteira por dia. A presença do dirigente nunca é ignorada. Por onde passa, as pessoas se viram com sorrisos, ainda que ele nem as cumprimente. “Buby tem uma energia incrível”, diz a biomédica paulistana Fabiana Ieger, que freqüenta há três anos um dos templos do Brasil. Ele também tem fama de fazer sucesso entre as mulheres. “O porte e o jeito de falar cativam. Ele chama a atenção das meninas.” Buby foi casado duas vezes s e hoje tem uma bela namorada, 36 anos mais nova que ele. Veste-se de modo simples, com bata e calça branca e um turbante de cor neutra. Se os fiéis reclamam de algo, é da falta de acesso a ele. Há mais de dez anos, o pai-de-santo não atende diretamente os visitantes. “Na última vez, em 1997, formou-se uma fila de 150 pessoas”, diz Buby. Apesar da fala mansa, ele não esconde o requinte das palavras e o poder de convencimento.
A origem desse líder umbandista faz jus à fama do Brasil como um país de forte sincretismo religioso. Batizado com o nome de Sebastião, santo que teria curado o irmão mais velho da coqueluche, o pai-de-santo nasceu em berço católico. Sua mãe, Natália Alves de Souza, afirma que não imaginava que o segundo filho fosse viver para – e dos – orixás. Os pais se mudaram para São Paulo porque queriam dar a ele, então com 7 anos, e a seus dois irmãos a possibilidade de estudo que não teriam na pequena Colônia Leopoldina, cidade de 17 mil habitantes a 84 quilômetros de Maceió. “Morávamos numa fazenda de cana-de-açúcar. Não tinha estrutura nem escola ali”, diz Natália.
Em São Paulo, as crianças puderam estudar. A família vivia do comércio e ia à missa todos os domingos. A trajetória do devoto coroinha da Igreja Matriz de Santo Amaro, em São Paulo, mudou quando ele completou 15 anos. Buby diz ter começado a sofrer de desmaios e dores de cabeça. Tornou-se um adolescente calado, sem entusiasmo pela vida. Perdeu o emprego de office-boy e não ia bem nos estudos. O pai-de-santo afirma que médicos, psicólogos e psiquiatras não conseguiram desvendar seu mal. “Meu diagnóstico veio dois anos depois: o Caboclo Ubiratan, em um terreiro de umbanda paulistano, disse que eu tinha mediunidade”, afirma. Um vizinho umbandista sugeriu a seus pais que o levassem a um centro. O pai-de-santo diz que os pais católicos acabaram por aceitar a idéia, mesmo acreditando que fosse pecado. Concordaram também que o filho continuasse a freqüentar o lugar por mais dois anos. Segundo Buby, foi quando o Caboclo Guaracy veio lhe dizer que era hora de fundar o próprio terreiro.
“Em 1997, na última vez em que atendi diretamente os fiéis, formou-se uma fila de 150 pessoas” Carlos Buby, pai-de-santo
Aos 19 anos, ele começou seu trabalho de modo caseiro, como tantos outros pais-de-santo. Buby afirma que incorporava o Caboclo na sala de casa, ajoelhado em frente a uma vela branca acesa sobre a radiovitrola, seu primeiro altar. De acordo com o pai-de-santo, no início, ele recebia os ensinamentos da entidade por intermédio de seu pai, que anotava tudo que entendia da fala enrolada do Caboclo. A irmã mais nova, Maria Aparecida de Souza, esperava pelo fim da sessão tremendo de medo. Aos poucos, ele passou a atender os conhecidos da família. Quando já não cabia mais gente na modesta casa do bairro paulistano Vila das Belezas, Buby resolveu montar um espaço próprio.
Embora diga que todas as mudanças que operou na religião tenham sido fruto de inspiração da entidade Caboclo Guaracy, as atitudes adotadas por Buby em seu templo demonstram ser resultado do planejamento de uma mente perspicaz e detalhista. Buby não chegou a completar o ensino fundamental. Repetiu seis vezes a 7a série e desistiu de estudar. Aparentemente, o conhecimento formal não fez falta. Quem o conhece diz que ele parece ter tino empresarial. “Ele é muito organizado e inteligente”, afirma Jamil Rachid, presidente da União de Tendas de Umbanda e Candomblé do Brasil. “Com administração regrada, o trabalho só pode prosperar.” A capacidade de organização veio com o trabalho no templo. Por volta dos 25 anos, Buby se dividia entre as funções de auxiliar de enfermagem durante o dia, pai-de-santo uma vez por semana e cantor de bar à noite. “Eu acabava as sessões, me trocava e passava a madrugada cantando em restaurante para conseguir me sustentar e manter o templo”, diz ele.
Após dez anos sem nenhum retorno na carreira musical, uma gravadora lhe propôs um bom contrato. Suas músicas seriam gravadas, mas ele teria de fazer inúmeras viagens para divulgação. “Eu ficaria 30 dias fora e dois em casa. Não tinha como conciliar a carreira de músico, de enfermeiro e dirigente de templo”, diz Buby. “Passei, então, a me dedicar totalmente à umbanda.” No início, os escassos dez filhos-de-santo –os médiuns sob a responsabilidade do pai-de-santo– e a casa rude e mal-acabada na Rua dos Missionários, em São Paulo, não permitiam prever a quantidade de seguidores e a suntuosidade que as casas do Caboclo Guaracy abrigariam. Hoje, há cerca de 430 filhos-de-santo brasileiros, divididos em dois templos no Estado de São Paulo. Um deles é s uma casa adornada por um lago artificial em que se criam carpas na região do bairro paulistano Campo Limpo. O outro, um sítio de 104.000 metros quadrados, com campos gramados, áreas de Mata Atlântica, um lago e uma cachoeira, em Cotia, na Grande São Paulo.
RITUAL E BELEZA
No templo de Cotia, as paredes são estilizadas. Nele, os médiuns ficam em círculo, formação incomum na umbanda. Os dois templos brasileiros foram arquitetonicamente projetados por Buby. São amplos, bem conservados e repletos de detalhes simbólicos. Durante o culto,todos os médiuns usam o mesmo modelo de roupa desenhado pelo pai-de-santo. Os objetos usados também são padronizados. Tudo parece estar sempre na mais perfeita ordem.
O Templo Guaracy em Cotia é aparentemente o melhor exemplo disso. Ao chegar lá, o fiel tem o conforto de um amplo estacionamento. É recepcionado por uma mulher com um turbante numa sala iluminada, com portas de vidro e cadeiras confortáveis. Numa escrivaninha descansa a tela plana do computador, no qual são registrados os dados do recém-chegado: nome completo, telefone, número do documento de identidade. As contas do templo estão no mesmo computador. “A informatização e o controle de freqüência são incomuns nos terreiros”, diz Milton Aguirre, presidente do Superior Órgão de Umbanda do Estado de São Paulo.
Vizinho à recepção, está o templo. Ele parece ter sido construído à semelhança de seu dirigente: imponente e sofisticado. Ao passar por uma das quatro portas de entrada, o visitante avista o colorido dos trajes dos umbandistas que dançam. No lugar de um velho reboco, paredes de barro graficamente desenhadas. O alto teto de palha dá um ar de suntuosidade. Ao contrário de outros centros, no Templo Guaracy os rituais são organizados de modo circular, com cada médium em seu lugar para dar maior visibilidade ao visitante. Evita-se qualquer ação que possa chocar ou constranger, como gritos ou a incorporação de espíritos que façam o médium se arrastar pelo chão. A duração dos cultos não passa de duas horas e sempre começa no horário, em sintonia com o relógio do pai-de-santo. “Isso tudo dá segurança à pessoa”, afirma Buby. “Quem entra aqui sabe que é um lugar organizado, que respeita horários.” Outra distinção importante: no terreiro de Buby o fiel não encontra Exus e Pombogiras, os espíritos que supostamente viriam do baixo povo. Bebidas alcoólicas não são ingeridas na frente dos freqüentadores, uma prática comum na umbanda. Boa parte dos cultos é feita à luz do sol, sempre com a presença de crianças. Também não há sacrifícios de animais.
O nascimento da umbanda
A versão mais aceita para a origem da umbanda estaria completando cem anos neste ano . Em 15 de novembro de 1908, o médium Zélio Fernandino de Moraes, considerado por muitos umbandistas como fundador da religião, teria incorporado o caboclo Sete Encruzilhadas em sua casa em Niterói. O fluminense Zélio tinha, nesse então, 17 anos. Ele sofria de paralisia e os médicos não conseguiam resolver seu mal. Para tentar sanar o problema, o jovem foi levado à federação espírita do estado do Rio de Janeiro. Ali, sua mediunidade foi supostamente revelada. A entidade caboclo Sete Encruzilhadas não teria sido aceita entre os espíritas por ser considerada inferior. A rejeição o levou a fundar a umbanda.
Carlos Buby moldou a religião para que fosse atraente e agradável para os letrados. “Buby criou uma umbanda clean”, afirma Lísias Negrão, sociólogo da Universidade de São Paulo (USP). O pai-de-santo diz que o estilo dos rituais faz parte da doutrina estabelecida pelo Caboclo Guaracy. Para ensinar esses preceitos, dá cursos pelos quais cobra até R$ 200. Nas aulas, os ditos médiuns, iniciantes ou não, tomam nota freneticamente enquanto Buby lança mão de conceitos científicos, como os genes ou a força da resistência do ar, para tentar explicar as energias dos orixás e suas formas de atuação.
“No Templo Guaracy, a arquitetura, os rituais, a filosofia e a explicação do mundo são complexos”, afirma a antropóloga húngara Viola Teisenhoffer, que faz doutorado sobre a expansão de terreiros de umbanda na França pela Universidade Paris X. “Eles atendem o tradicional umbandista e ainda atraem um público sofisticado, que provavelmente nunca pisaria num templo de fundo de quintal.”
É o caso da paulistana Daniela Matarazzo de 36 anos. A advogada da Embraer e ex-professora universitária, freqüenta o Templo Guaracy há seis anos. Daniela conheceu o lugar por meio de uma aluna de seu curso de Direito. “Eu trabalhava demais, vivia estressada e havia muito tempo não praticava minha religiosidade”, diz a advogada, cuja formação foi católica. Casada, mãe de dois filhos, com uma rotina estressante que a faz se dividir entre duas casas, uma em São José dos Campos onde trabalha, e a outra em São Paulo onde mora, ela afirma que o terreiro ajuda a melhorar sua qualidade de vida. “Vejo o templo como uma terapia. A umbanda se mostrou uma ótima oportunidade de refletir sobre a vida. Sempre saio com a auto-estima mais fortalecida.” Daniela nunca freqüentou outros terreiros antes e diz se sentir segura com o trabalho do Templo Guaracy. Quando questionada sobre outros terreiros ela hesita. “O que me fez ir ao Templo Guaracy foi o fato de os rituais serem de dia e de o lugar ser muito bonito, organizado e agradável”, afirma. “Se fosse à noite, num quartinho escuro, eu jamais iria. Tenho meus limites.”
Segundo o pai-de-santo todos os seus templos, inclusive aqueles fora do país, foram construídos com o dinheiro de doações dos freqüentadores. Ele também afirma que nunca houve transferência de caixa do Brasil para o exterior. “Cada templo se mantém com os recursos que consegue. Não há intercâmbio de dinheiro entre eles”, diz Buby. Ao contrário do que comumente acontece nos terreiros, ele não paga as contas do templo. Buby adota uma prática de muitas religiões tradicionais, mas exceção na umbanda: é sustentado pelo templo. Enquanto padres, bispos e rabinos recebem por se dedicar à religião, pais-de-santo da umbanda não se profissionalizam. Ao contrário, põem dinheiro do próprio bolso na instituição. “Mais de 90% dos terreiros são sustentados pelos dirigentes. Feliz é o pai-de-santo que consegue viver do dinheiro que sai dali”, afirma Rubens Saraceni, dirigente e autor de livros sobre o tema.
Buby transformou os dois templos de São Paulo em associações. Passou a convidar os freqüentadores, mesmo àqueles que só apareciam de vez em quando, a se tornar sócios. No início, a idéia era que cada membro brasileiro contribuísse com uma mensalidade de R$ 35. “É com esse dinheiro que mantemos a casa, mas se a pessoa não puder pagar não tem problema”, diz Buby. Muitos fiéis dos templos de Buby afirmam ser um preço justo pelo conforto e sofisticação que a casa oferece. Ainda assim, Buby diz que menos da metade paga o valor total. Ele exibiu as contas do terreiro para a reportagem de ÉPOCA. Nos recursos declarados por ele no Imposto de Renda de 2007, a arrecadação dos associados soma R$ 132.513, ou algo como R$ 11 mil por mês. “Muitos terreiros não arrecadam isso em um ano inteiro”, diz o líder umbandista Milton Aguirre. “Não conseguimos fazer com que os médiuns doem nem R$ 10.” Os gastos declarados no mesmo ano foram de R$ 173.289, resultando num saldo negativo de R$ 40.777. Buby diz que cobriu esse saldo negativo com os cursos que oferece. Ele também mostrou extratos de sua conta bancária pessoal – saldo negativo de R$ 700 – e da conta do templo – saldo positivo de R$ 2.114,17.
Se os templos paulistas foram planejados, o mesmo não aconteceu, -diz Buby- com os nove terreiros Guaracy fora do país. “Ter casas no exterior nunca foi minha intenção”, afirma. Ele não fala nenhuma língua estrangeira e se diz pouco afeito a viagens. Nos anos 80, psicólogos suíços e franceses em visita ao Brasil teriam ido conhecer o primeiro templo. “Eles ficaram fascinados. Em menos de três meses, voltaram querendo aprender sobre a tradição”, diz Buby. Desse interesse teria nascido o primeiro terreiro fora do Brasil, o Templo Guaracy de Genebra, na Suíça. Numa sala alugada, uma imagem do Caboclo Guaracy ocupou o centro do altar, adornado com flores, pedras e uma pequena fonte. Os suíços e os franceses compraram as roupas coloridas e bufantes criadas por Buby, modelo depois usado em todas as unidades. Para entender as entidades da umbanda os estrangeiros tiveram de estudar a história e o significado dos Caboclos e Pretos Velhos. Buby exigiu que todos os praticantes fizessem o culto em português. Fitas cassete gravadas com os cantos umbandistas foram reproduzidas à exaustão, até que o coro perdesse o sotaque.
Cassandra Kharam, professora americana de 39 anos, é uma das 40 pessoas que vão ao Templo Guaracy de Washington semanalmente. Filha de judeus, Cassandra foi a cultos islâmicos e conheceu a religião cubana santería, equivalente ao candomblé nos países centro-americanos. “O terreiro de umbanda foi o lugar em que me senti melhor”, diz. “Nos Estados Unidos, as pessoas estão carentes de um senso de comunidade e de maior positividade, coisas que a umbanda tem. As outras religiões são mais fechadas e unilaterais.”
Na Europa, talvez por curiosidade ou necessidade, franceses e austríacos começaram a viajar até Genebra para ouvir as palavras de um caboclo. “Pensamos, então, que seria possível formar templos na Áustria e na França”, afirma Maria Aparecida, irmã de Buby. Ela antes temia a aparição do Caboclo. Hoje, visita os terreiros no exterior a cada quatro meses. É a responsável por garantir que os rituais sejam idênticos aos realizados no Brasil. Depois de Genebra, Buby fundou outros quatro templos na Europa.
Os templos estrangeiros sofreram pequenas adaptações. Em Berkeley, nos EUA, é proibido fumar em locais fechados. Isso levou os médiuns a abandonar charutos e cachimbos usados nos rituais. Em Paris, os umbandistas estocam no congelador ervas importantes para os rituais, como o manjericão, que não resiste ao frio da cidade. Em Washington, grossas espumas isolam o som forte do atabaque do resto da vizinhança. Apesar dessas alterações, esses templos têm a mesma organização administrativa do Brasil. O trabalho é realizado por s coordenadores, pessoas escolhidas por Buby para resolver os problemas práticos e burocráticos das casas. Eles registram os visitantes, cuidam de uma loja de produtos religiosos e cobram mensalidades dos associados. Anualmente, os filhos-de-santo têm de vir ao Brasil. Para isso, Buby montou uma pousada em Cotia, na Grande São Paulo. “O pai nunca veio a nosso terreiro, por isso é importante irmos a seu país para beber na fonte da sabedoria”, afirma Krishna Ruano, coordenadora do templo de Nova York. “Ultimamente, não temos ido porque a viagem é muito cara.”
Essa é uma reclamação recorrente dos estrangeiros. Há quem diga que essas viagens anuais são um dos meios de Buby ganhar dinheiro. “A gente ia para ficar uns dez dias no Brasil. Ficávamos presos no templo e ainda pagávamos 30 euros por dia pela hospedagem”, diz um ex-filho-de-santo na Europa, que não quis se identificar. “O que ele faz não é umbanda. Ele não é um pai-de-santo, é um empresário, um agente de viagens.” Buby nega as acusações e afirma que sua intenção nunca foi lucrar com a religião. “Só tenho uma linha telefônica. Todas as propriedades estão em nome do templo”, diz.
Essa não é a única polêmica em que se envolveu o líder religioso. Em 1996, a psicoterapeuta francesa Barbara Schausser, coordenadora do terreiro de Paris, foi processada por duas pacientes que a acusaram de praticar rituais da seita para tratar a bulimia de ambas. Barbara teria usado a umbanda como forma de tratamento. Isso teria causado dependência emocional e isolamento social, segundo as francesas. A psicoterapeuta respondeu ao processo judicial com um outro, por difamação. A história acabou em acordo amigável entre as partes. “Eu vejo o templo como uma terapia. A umbanda se mostrou uma ótima oportunidade de refletir sobre a vida. Sempre saio com a auto-estima mais fortalecida” Daniela Matarazzo, 36 anos, advogada.
O caso teve grande repercussão na França. Reportagens foram publicadas em jornais de grande circulação, como o Libération. Depois desse episódio, Barbara perdeu a credencial de psicoterapeuta do Mutuelle Générale de L’Education Nationale, órgão oficial do governo francês que apóia pesquisas na área da saúde. “Sempre busquei alternativas a remédios no tratamento de vícios e doenças compulsivas. Foi o que fiz nesse caso”, diz Barbara. Mesmo após o processo, ela continua com as práticas umbandistas em seu consultório, mas afirma que nunca mais levou seus pacientes ao templo.
Embora alguns pais-de-santo digam que Buby quer padronizar a religião e controlar os fiéis, seu estilo de dirigir o terreiro parece ser uma alternativa para a sobrevivência da umbanda no Brasil. “A tendência é que diminua o número de umbandistas”, afirma Reginaldo Prandi, sociólogo da religião da USP. “Um dos grandes motivos para a perda de fiéis é o crescimento das igrejas evangélicas, com sistemas menos complexos e que exigem menos tempo e dedicação.” Nas igrejas pentecostais, não há vários deuses, como os orixás. “Na umbanda, é sempre preciso estar alerta, dar atenção aos orixás, aos guias, fazer trabalhos e há sempre a ameaça de que alguém manipule essas forças contra você”, diz a antropóloga Yvonne Maggie, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Se a pessoa passa a acreditar que só Jesus salva, só ele é poderoso, tudo fica mais simples.”
É a idéia do medo do feitiço tão freqüente nos terreiros, que Buby procura afastar de seus rituais. “Não negociamos com Deus. Não acreditamos que os orixás sejam responsáveis pelo sucesso ou fracasso de alguém”, afirma. A nova leitura da crença feita por esse pai-de-santo, somada à administração moderna, pode atrair novos seguidores para a religião. “No futuro, quase todos os pais-de-santo serão como ele”, diz o antropólogo Vagner Gonçalves da Silva.
Para entender a umbanda: Significados de termos usados na religião
ADJÁ -Sino metálico de três bocas agitado pelo pai-de-santo
ARUANDA -Morada dos orixás, o céu na tradição católica
ATABAQUE -De origem árabe, é um instrumento de percussão africano, usado nos cantos
BABALORIXÁ -Sinônimo de pai-de-santo, que também pode ser dirigente de terreiro
ENCRUZILHADA -Nos cruzamentos de ruas, linhas férreas ou qualquer via terrestre estariam as moradas dos Exus e Pombogiras
GIRA -Nome dado aos rituais em que os espíritos viriam para atender os fiéis
GUIA -Entidades que os médiuns supostamente recebem. Também servem para designar os colares coloridos usados nos cultos
PEMBA -Tipo de giz que teria poderes mágicos, usado nos rituais de benzer
Os espíritos da umbanda: Os arquétipos das entidades que atendem os fiéis nos terreiros
CABOCLOS -Esses seriam os espíritos que se comportam como índios. Usam palavras em tupi. Fumam charuto e, por vezes, tomam cerveja. Usam cocar de penas e capas. Seriam os mais evoluídos, ao lado dos Pretos Velhos
PRETOS VELHOS -Representariam os escravos brasileiros. O médium que supostamente os recebe anda arqueado. Fumam cachimbo e tomam café. São procurados pelo poder de cura que teriam e nomeados de “vô” e “vó”
ERÊS -Seriam espíritos das crianças. A maior parte não sabe andar. Toma guaraná, chupa pirulito e benze os fiéis com brinquedos. Alegres, seus nomes estão no diminutivo. Chamam os adultos de “tio” ou “tia”
BAIANOS -Seriam arquétipos de espíritos nascidos na Bahia. Com forte sotaque baiano, usam expressões típicas, como “meu rei”. Fumam cigarro de palha, tomam batida de coco. Os homens geralmente carregam uma peixeira
BOIADEIROS -O mítico peão sertanejo responsável pelo gado seria representado por eles. hicote, boleadeiras e berrante são seus instrumentos. São valentes e fortes. Com voz grave, é difícil entender o que falam
MARINHEIROS -Quando baixam, faz o médium ter dificuldade de equilíbrio, chacoalhando de um lado para o outro, como se estivesse em alto-mar. Explicam o mundo por meio de metáforas
sobre navegação
CIGANOS -É uma nova entidade na umbanda. Eles dançam e tocam castanholas e pandeiros. A capacidade de adivinhação e leitura de cartas costuma estar relacionada à presença desses espíritos
EXUS/POMBOGIRAS -Conhecidos como espíritos que viriam do ambiênte prostibular, seriam capazes de fazer o mal em troca de bebidas ou velas pretas. O Exu toma uísque e cachaça. A Pombogira sidra, champanhe e anis
A psicóloga Barbara Schasseur, citada na reportagem, enviou a ÉPOCA a seguinte carta:
O processo a que a reportagem se refere foi na verdade iniciado por mim contra dois ex-pacientes em 1996, e não teve “grande repercussão na França”. A reportagem feita pelo Libération foi a única sobre o assunto, e saiu seis anos depois do processo, no momento da publicação de meu livro e de uma entrevista minha à Radio France. Essa reportagem foi feita por iniciativa de pessoas que criticavam minhas teorias e se apoiava na raiva de alguns pacientes.
Fui eu que me demiti da Mutuelle Générale de L’Éducation Nationale em 1999. A Mutuelle não é um órgão oficial do governo francês nem apóia pesquisas na área de saúde. É um fundo de aposentadoria complementar criado pelos professores franceses da Éducation Nationale, esta sim um serviço público.
Nunca perdi minha credencial com o governo. Não só sou psicoterapeuta, mas também doutora em psicologia clínica pela Universidade Paris VII, com diploma de medicina tradicional africana.
Não estou praticando umbanda no meu consultório. A umbanda é uma crença e uma religião que desenvolve a mediunidade para contactar entidades. Não levo nenhuma crença para dentro do meu consultório nem trabalho com mediunidade.
Nunca tentei tratar bulimia levando pacientes ao Templo Guaracy, porque sempre esteve claro para mim que o Templo Guaracy oferece um caminho espiritual, e não uma cura. A bulimia é uma doença grave, que precisa de ajuda especializada.
Por fim, gostaria de esclarecer que o Templo Guaracy de Paris é considerado pelo governo francês como um culto de tradição afro-brasileira, e não uma seita. Em 1996, na França, houve todo um movimento político e religioso perseguindo as associações que apoiavam conceitos espirituais. Uma “lista negra” das seitas foi publicada. O Templo Guaracy não entrou nessa lista porque sempre foi reconhecido na França, pelo governo, como um culto religioso,que respeita as leis do país. Se seus dirigentes foram criticados por algum motivo, é outra história.
Barbara Schasseur, Paris, França
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